sábado, 16 de julho de 2011

Pequenas Notas: 9. cracolândias e vida nua

O filósofo Giorgio Agamben, em seu livro, "Homo sacer: o poder soberano e a vida nua", nos oferece a possibilidade de aproximar algumas de suas idéias à realidade das cracolândias brasileiras.

Vamos partir da figura do homem - lobo, o lobisomem: ser híbrido que, na sua origem, foi banido da comunidade, deixando de encontrar nela apoio, acolhida ou mesmo abrigo.

Não se trata, no entanto de uma existência puramente animal sem qualquer relação com a cidade e a cultura.

O homem lobo, aproximado ao homo sacer (antiga categoria do direito romano) encontra-se entre a natureza ferina  e o homem, numa espécie de zona de indistinção - nem homem nem fera. Habita "paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum".

Para Agambem, a vida nua é precisamente este limiar entre vida biológica, natural e a vida investida pela cultura. O homo saucer - representante da vida nua - podia ser morto por qualquer um impunemente, pois sua morte não se enquadrava na categoria de assassinato.

Transposto para os tempos atuais, estamos falando de uma vida descartável, "despolitizada", decaída e sem nenhum quinhão de reconhecimento social.

Alguma semelhança com como são tratados os habitantes das cracolândias brasileiras?







sábado, 14 de maio de 2011

Trilhas do consumo de crack pelo mundo

Nos Estados Unidos (país de onde surgiu a droga) o uso de crack se desenvolveu a partir dos anos 80 impulsionado, não só pelas crescentes dificuldades de se obter cocaína aspirada de qualidade e a baixo custo (Haasen e col., 2004), como também pela alta lucratividade do comércio. Comércio gerenciado por gangues de rua que impunham seus domínios através da força, buscando garantir direitos de propriedade sobre a compra e venda, e prevenir a propagação de “maus pagadores” (Fryer e col., 2005).

Inicialmente o crack era encontrado em cidades como Nova York, Los Angeles e Miami, depois migrando para outras localidades. Entre 1995 e 2000 quatro estados americanos detiveram os maiores índices de prevalência da droga: Maryland, Nova York, Novo México e Nova Jersey.

Documenta-se que seu apogeu se originou em 1989 e estendeu-se até 1993, a partir de quando o consumo ainda se manteve em níveis elevados (Fryer e col., 2005). Contudo, mais recentemente, o que se verifica no país, nos últimos dois anos, é a redução do uso de cocaína aspirada (0.8% último mês) assim como de sua forma fumada. Em 2008 houve prevalência de utilização de crack, no último mês, de 0.1%. Índice menor que 2007 quando se acusava proporção de 0.2% de usuários (NSDUH, 2008; UNODC, 2009).

A despeito da tendência de diminuição dos níveis de consumo, pesquisadores alertam para os riscos de sub-representação dos dados, no que tange ao crack e seus impactos entre classes socialmente desfavorecidas; e que integram o grande público consumidor da droga nos EUA. Mais especificamente hispânicos e prioritariamente, membros da comunidade negra (Cornish & O’ Brien, 1996).

Na Europa, região em que se atesta atual estabilização do consumo de cocaína (UNODC, 2009), o crack não pareceu partilhar do “boom” ocorrido nos Estados Unidos, e sua penetração se restringiu a um número bem mais limitado de cidades e países. Uma curiosa singularidade quanto à sua forma de administração tem origem européia, qual seja, a forma injetável, via de regra, associada à heroína.

No Reino Unido (maior mercado consumidor de cocaína da Europa), embora tenha sido a partir do ano 2000 que se verificou incremento das apreensões de crack pela polícia (Corkery & Airs, 2003), e elevada proporção de usuários em tratamento relatando uso da substância (Hope e col., 2005); as informações de consumo já datavam de 1992. Atualmente, as maiores prevalências em relação a grupos específicos ocorrem entre mulheres profissionais do sexo (Green e col., 2000), freqüentadores do sistema prisional e, em termos raciais, entre os negros (“Black British” e “Black Caribbean”) (Gossop e col., 1994; Donmall, 1995).

Em Frankfurt (Alemanha) a porcentagem de usuários de crack quadruplicou entre 1994 e 1996. Um levantamento nacional datado de 2001 registrou que 43% dos que buscaram tratamento para uso primário de opióides, também faziam uso de crack (Haasen e col., 2004; Verthein e col., 2001). Entre 2000 e 2003 o consumo da droga em contexto de rua (avaliado nas últimas 24 horas), subiu de 22% para 71%, na cidade de Hamburgo (Verthein e col., 2001).

Na Holanda a região de Amsterdã tem documentado crescente dominância do crack, não só entre dependentes de heroína, como também, entre jovens usuários marginalizados e população geral (Buster e col., 2009; Brunt e col., 2009). Já em território espanhol, houve primeira apreensão policial de crack em 1988, sendo que seu consumo se expandiu por cidades como Sevilha (principalmente), Madri e Barcelona (Barrio e col., 1998). Nestas localidades o crack associava-se ao uso primário de opióides. Atualmente crescem os relatos de consumo entre grupos de jovens, e entre os que têm se apresentado para tratamento. Finalmente, na França o crack foi notificado pela primeira vez em 1987, e em 1993 documentou-se forte expansão da substância nas ruas de Paris (Ingold & Toussirt, 1994).

Na Austrália, entre 1996 e 2000, em levantamento realizado para se detectar consumo de cocaína, a despeito do achado de aumento da disponibilidade desta substância, seu uso se deu na forma injetável e aspirada, freqüentemente entre usuários de heroína. Não foi reportado, ao longo do período, consumo de crack (Darke e col., 2002).

Voltando às Américas, no Canadá o crack acusa alta prevalência entre usuários de rua. Em pesquisa envolvendo consumidores de drogas injetáveis observou-se que 52.2% haviam fumado crack nos últimos seis meses. Especificamente em Toronto, 78.7% dos usuários locais relataram ter usado crack (Fischer e col., 2006). Já em Vancouver, numa ampla coorte consumidora de drogas injetáveis, o uso de crack aumentou de 35% para 55%, entre 1998 e 2000 (Buxton, 2003) .

Na América do Sul há uma grande dificuldade de se encontrarem estudos que documentem uso de crack, restringindo a mensuração adequada do desenvolvimento do consumo. Existem limitadas menções à substância em países como Chile, Bolívia, Peru e Argentina (Santis e col., 2007; Inchaurraga, 2003). Por outro lado, informações oficiais relativas ao consumo de cocaína (sem discriminação de via de uso) dão conta de aumento da prevalência na Venezuela, Equador, Argentina, Chile e Uruguai (UNODC, 2010).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Breves Ponderações

Gustavo S. Cetlin, em seu artigo sobre "o tratamento ao usuário compulsivo de crack: fissuras no cotidiano profissional", ilustra brevemente o impacto do discurso hegemônico e das relações de poder-saber sobre a questão da escolha, neste campo. Aliás, este é um ponto bastante delicado de reflexão e parece ganhar ainda mais importância quando falamos de indivíduos que consomem crack.

Segundo Gustavo, na dupla nomeação do usuário, ora como dependente-doente, ora como criminoso o que está em jogo é justamente a anulação de sua capacidade e possibilidade de escolha: "a dependência é a nomeação de sua desautorização e a infração, sua desqualificação".

Esta frase faz eco e se dilata nos pensamentos daqueles que trabalham com a clínica. Ora, se o objetivo de nossas práticas - como profissionais de saúde - é favorecer encontros e experiências transformadoras, num movimento constante de priorização da centralidade do sujeito e de sua história; o que estamos fazendo quando recebemos um indivíduo que constitui uma relação de exclusividade com o crack e, já à priori, nos colocamos a dizer o que vai ser feito  e como deve ser feito? Será que estamos trabalhando em consonância com as diretrizes da saúde? Será que estamos viabilizando processos de fomento e expansão de autonomia?

Rosana Onocko Campos, em interessante debate a respeito da política nacional de Humanização, refere-se a uma diferenciação presente na ética aristotélica entre conhecimento técnico e conhecimento ético. No primeiro haveria sempre um saber prévio ao qual recorrer. Já na ética, "no mundo da ação não vale o saber, mas o "saber-se" em situação", para que apenas num segundo momento se possa empreender a busca por um conhecimento anterior.

Completando estas breves ponderações também Bergson nos oferece algo a pensar:
(...) “A idéia de que poderíamos ter de criar peça por peça, para um objeto novo, um novo conceito, talvez um novo método de pensar, repugna-nos profundamente. A história da filosofia está aí, no entanto, a nos mostrar o eterno conflito dos sistemas, a impossibilidade de fazer com que o real entre definitivamente nessas vestes de confecção que são nossos conceitos já prontos, a necessidade de trabalhar sob medida”.
(Bergson, 2005. A evolução criadora: p.52).

Referência (Rosana Onocko Campos): "Mudando os processos de subjetivação em prol da humanização da assistência".

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Fique Ligado!

Um dos aspectos envolvidos na "cultura do crack" é a possibilidade de acumulação, por parte do usuário, de uma dupla função, a saber: o consumo e a venda da droga.

Para este grupo de indivíduos o comércio da "pedra" se opera de forma isolada e fragmentada e procura atender à necessidade de manutenção do uso continuado, configurando-se uma modalidade de venda para consumo próprio.

Neste sentido comporta uma diferença em relação à complexa trama organizada do tráfico de drogas, de atribuições e deveres bem delimitados e que objetiva a consolidação e expansão de um negócio robusto e rentável.

Quanto à existência da atividade de venda para consumo próprio (intitulada de "microtráfico"), torna-se relevante pensarmos o encaminhamento que se pode dar a esta questão. Enquadrá-la na categoria tráfico de drogas e fazer incidir sobre ela todas as suas implicações legais ou entendê-la como um fenômeno que merece melhor caracterização e critérios de conduta compatíveis com as singuaridades do mesmo?