sábado, 14 de maio de 2011

Trilhas do consumo de crack pelo mundo

Nos Estados Unidos (país de onde surgiu a droga) o uso de crack se desenvolveu a partir dos anos 80 impulsionado, não só pelas crescentes dificuldades de se obter cocaína aspirada de qualidade e a baixo custo (Haasen e col., 2004), como também pela alta lucratividade do comércio. Comércio gerenciado por gangues de rua que impunham seus domínios através da força, buscando garantir direitos de propriedade sobre a compra e venda, e prevenir a propagação de “maus pagadores” (Fryer e col., 2005).

Inicialmente o crack era encontrado em cidades como Nova York, Los Angeles e Miami, depois migrando para outras localidades. Entre 1995 e 2000 quatro estados americanos detiveram os maiores índices de prevalência da droga: Maryland, Nova York, Novo México e Nova Jersey.

Documenta-se que seu apogeu se originou em 1989 e estendeu-se até 1993, a partir de quando o consumo ainda se manteve em níveis elevados (Fryer e col., 2005). Contudo, mais recentemente, o que se verifica no país, nos últimos dois anos, é a redução do uso de cocaína aspirada (0.8% último mês) assim como de sua forma fumada. Em 2008 houve prevalência de utilização de crack, no último mês, de 0.1%. Índice menor que 2007 quando se acusava proporção de 0.2% de usuários (NSDUH, 2008; UNODC, 2009).

A despeito da tendência de diminuição dos níveis de consumo, pesquisadores alertam para os riscos de sub-representação dos dados, no que tange ao crack e seus impactos entre classes socialmente desfavorecidas; e que integram o grande público consumidor da droga nos EUA. Mais especificamente hispânicos e prioritariamente, membros da comunidade negra (Cornish & O’ Brien, 1996).

Na Europa, região em que se atesta atual estabilização do consumo de cocaína (UNODC, 2009), o crack não pareceu partilhar do “boom” ocorrido nos Estados Unidos, e sua penetração se restringiu a um número bem mais limitado de cidades e países. Uma curiosa singularidade quanto à sua forma de administração tem origem européia, qual seja, a forma injetável, via de regra, associada à heroína.

No Reino Unido (maior mercado consumidor de cocaína da Europa), embora tenha sido a partir do ano 2000 que se verificou incremento das apreensões de crack pela polícia (Corkery & Airs, 2003), e elevada proporção de usuários em tratamento relatando uso da substância (Hope e col., 2005); as informações de consumo já datavam de 1992. Atualmente, as maiores prevalências em relação a grupos específicos ocorrem entre mulheres profissionais do sexo (Green e col., 2000), freqüentadores do sistema prisional e, em termos raciais, entre os negros (“Black British” e “Black Caribbean”) (Gossop e col., 1994; Donmall, 1995).

Em Frankfurt (Alemanha) a porcentagem de usuários de crack quadruplicou entre 1994 e 1996. Um levantamento nacional datado de 2001 registrou que 43% dos que buscaram tratamento para uso primário de opióides, também faziam uso de crack (Haasen e col., 2004; Verthein e col., 2001). Entre 2000 e 2003 o consumo da droga em contexto de rua (avaliado nas últimas 24 horas), subiu de 22% para 71%, na cidade de Hamburgo (Verthein e col., 2001).

Na Holanda a região de Amsterdã tem documentado crescente dominância do crack, não só entre dependentes de heroína, como também, entre jovens usuários marginalizados e população geral (Buster e col., 2009; Brunt e col., 2009). Já em território espanhol, houve primeira apreensão policial de crack em 1988, sendo que seu consumo se expandiu por cidades como Sevilha (principalmente), Madri e Barcelona (Barrio e col., 1998). Nestas localidades o crack associava-se ao uso primário de opióides. Atualmente crescem os relatos de consumo entre grupos de jovens, e entre os que têm se apresentado para tratamento. Finalmente, na França o crack foi notificado pela primeira vez em 1987, e em 1993 documentou-se forte expansão da substância nas ruas de Paris (Ingold & Toussirt, 1994).

Na Austrália, entre 1996 e 2000, em levantamento realizado para se detectar consumo de cocaína, a despeito do achado de aumento da disponibilidade desta substância, seu uso se deu na forma injetável e aspirada, freqüentemente entre usuários de heroína. Não foi reportado, ao longo do período, consumo de crack (Darke e col., 2002).

Voltando às Américas, no Canadá o crack acusa alta prevalência entre usuários de rua. Em pesquisa envolvendo consumidores de drogas injetáveis observou-se que 52.2% haviam fumado crack nos últimos seis meses. Especificamente em Toronto, 78.7% dos usuários locais relataram ter usado crack (Fischer e col., 2006). Já em Vancouver, numa ampla coorte consumidora de drogas injetáveis, o uso de crack aumentou de 35% para 55%, entre 1998 e 2000 (Buxton, 2003) .

Na América do Sul há uma grande dificuldade de se encontrarem estudos que documentem uso de crack, restringindo a mensuração adequada do desenvolvimento do consumo. Existem limitadas menções à substância em países como Chile, Bolívia, Peru e Argentina (Santis e col., 2007; Inchaurraga, 2003). Por outro lado, informações oficiais relativas ao consumo de cocaína (sem discriminação de via de uso) dão conta de aumento da prevalência na Venezuela, Equador, Argentina, Chile e Uruguai (UNODC, 2010).

terça-feira, 10 de maio de 2011

Breves Ponderações

Gustavo S. Cetlin, em seu artigo sobre "o tratamento ao usuário compulsivo de crack: fissuras no cotidiano profissional", ilustra brevemente o impacto do discurso hegemônico e das relações de poder-saber sobre a questão da escolha, neste campo. Aliás, este é um ponto bastante delicado de reflexão e parece ganhar ainda mais importância quando falamos de indivíduos que consomem crack.

Segundo Gustavo, na dupla nomeação do usuário, ora como dependente-doente, ora como criminoso o que está em jogo é justamente a anulação de sua capacidade e possibilidade de escolha: "a dependência é a nomeação de sua desautorização e a infração, sua desqualificação".

Esta frase faz eco e se dilata nos pensamentos daqueles que trabalham com a clínica. Ora, se o objetivo de nossas práticas - como profissionais de saúde - é favorecer encontros e experiências transformadoras, num movimento constante de priorização da centralidade do sujeito e de sua história; o que estamos fazendo quando recebemos um indivíduo que constitui uma relação de exclusividade com o crack e, já à priori, nos colocamos a dizer o que vai ser feito  e como deve ser feito? Será que estamos trabalhando em consonância com as diretrizes da saúde? Será que estamos viabilizando processos de fomento e expansão de autonomia?

Rosana Onocko Campos, em interessante debate a respeito da política nacional de Humanização, refere-se a uma diferenciação presente na ética aristotélica entre conhecimento técnico e conhecimento ético. No primeiro haveria sempre um saber prévio ao qual recorrer. Já na ética, "no mundo da ação não vale o saber, mas o "saber-se" em situação", para que apenas num segundo momento se possa empreender a busca por um conhecimento anterior.

Completando estas breves ponderações também Bergson nos oferece algo a pensar:
(...) “A idéia de que poderíamos ter de criar peça por peça, para um objeto novo, um novo conceito, talvez um novo método de pensar, repugna-nos profundamente. A história da filosofia está aí, no entanto, a nos mostrar o eterno conflito dos sistemas, a impossibilidade de fazer com que o real entre definitivamente nessas vestes de confecção que são nossos conceitos já prontos, a necessidade de trabalhar sob medida”.
(Bergson, 2005. A evolução criadora: p.52).

Referência (Rosana Onocko Campos): "Mudando os processos de subjetivação em prol da humanização da assistência".